(por Prof. José Irivaldo)

O modelo de federação brasileiro é algo complexo e polêmico de discutir. Mesmo sendo um tema controverso, nós que atuamos na formação de gestores públicos não podemos nos furtar de analisar o momento atual da COVID-19 e seus efeitos sobre a gestão pública. Logo que o governo atual iniciou, janeiro de 2019, e com o desenrolar da relação executivo legislativo sob a égide de uma suposta renovação do parlamento, verificou-se que os partidos que davam sustentação ao mandatário atual do Planalto não seriam suficientes para avançar em reformas ou em ações do programa do governo. Percebeu-se, também, uma certa desorganização e falta de forma na bancada de apoio ao Presidente. Logo constatou-se que seria tarefa mais difícil costurar acordos com o parlamento em torno das votações. Daí, esse grupo de parlamentares apoiadores do presidente se apresentaram numa forma desorganizada de atuar na relação executivo legislativo. Assim, o Presidente começou a usar isso a seu favor dizendo que tinha instituído uma nova forma de governança, ou seja, “faço a minha parte e passo a bola para o congresso”.
Bom, o Presidente falou uma verdade que, inclusive, está em nossa constituição com o seguinte texto: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” (art. 2). Cada um tem um conjunto de atribuições típicas e outras atípicas que, excepcionalmente, são exercidas, como, por exemplo, a edição de uma Medida Provisória, com força de lei pelo Executivo. Portanto, deveria ter sido sempre assim, cada um faz a sua parte e se negocia dentro da legalidade o que for possível, sem o tradicional “toma lá da cá”. Portanto, parecia que estávamos inaugurando uma nova era do presidencialismo de coalizão na contemporaneidade. Só que não. As crises institucionais tem demonstrado falta de habilidade por parte do executivo em negociar e manter uma relação minimamente harmônica entre os poderes da República. Isso é percebido e constatado pelos pronunciamentos oficiais e oficiosos na internet. Mesmo que não houvesse o tradicional “toma lá da cá” caberia a qualquer chefe de poder manter a urbanidade nas relações e o processo de negociação que é próprio da política. Para piorar, o Presidente ficou sem partido e está buscando criar uma nova legenda, então, o que já era ruim em termos de relação executivo legislativo poderia ficar pior. Dessa forma, a atuação do executivo no Congresso ficaria mais amorfa e avulsa na dependência de parlamentares que se aliassem aos valores e essências do governo.
Aí, tudo mudou! Como? Vem a COVID-19 que demonstra um alto poder de combustão não só na saúde mas no cenário político. Sendo assim, estamos presenciando um “cabo de guerra” em que cada poder está puxando uma ponta da corda, notadamente executivo e legislativo. Nesse contexto de quem pode mais, de isolamento social total, quem pode determinar o quê, poucos se apercebem que estamos diante da realidade do nosso modelo de federalismo e de uma divisão de poderes onde o legislador constituinte originário, aquele que elaborou a Constituição que conhecemos, estabeleceu freios para potenciais abusos de poder, ou seja, para aqueles que ultrapassassem a linha imaginária da harmonia e independência dos poderes, uma vez que estávamos saindo de um regime de exceção, a ditadura, e os parlamentares egressos de uma campanha de “diretas já”, que não teve êxito, desejavam colocar limites claros no poder do Chefe do Executivo.
Portanto, sempre essa relação entre executivo e legislativo foi alvo de polêmicas das mais diversas ordens e agora não seria diferente, expondo as falhas do nosso sistema político e do nosso modelo de federação. Ambas as questões estão imbricadas, porém, logo no art. 1 da CF temos o seguinte texto: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, (…)”. Para além disso, o atual Chefe do Executivo sempre falou que atuaria no sentido de ser “mais Brasil e menos Brasília”, discurso que simbolizava uma maior descentralização entre os entes federados.
Porém, com a atual pandemia as vísceras das intencionalidades do mandatário foram expostas de tal modo que foram visualizadas como alguém que demonstra o interesse de concentrar mais poderes, o que só seria possível com uma nova constituinte, estamos aqui falando de cláusulas pétreas, ou seja que não podem ser modificadas sob pena de termos que dissolver o atual sistema e reelaborar outro com uma nova constituinte produzindo uma nova constituição, o que não seria bom no presente momento. Mas quanto ao nosso federalismo tupiniquim, ele sempre funcionou com uma altíssima concentração de capacidade de investimento por parte do governo central, que fica com a maior fatia do “bolo” tributário, forçando sempre os governos subnacionais a convergirem com o executivo, inclusive incentivando-se a mudança de partido para facilitar o repasse de recursos. Lembrando, que emerge neste governo, novamente, as emendas impositivas que obrigam a União a repassar os valores dessas aos parlamentares, esvaziando a capacidade de investimento da União. Mas não deveria ser “mais Brasil e menos Brasília”? Hoje vivenciamos um momento ímpar onde temos um presidente que não tem maioria no congresso, tão pouco goza de maioria entre os governos subnacionais.
A crise da COVID-19 expõe uma federação sem costume de atuar de acordo com suas atribuições constitucionais e um governo central que não sabe lidar com a descentralização, editando a medida provisória n. 926/2020, que mexe com essa questão em que o governo federal dispõe sobre uma série de medidas em virtude da situação urgente. O Ministro Marco Aurélio de Mello indeferiu parcialmente o pedido do PDT, mas alertou que no campo da saúde as competências são concorrentes, o que significa dizer que não há hierarquia ou supremacia de uma normativa sobre a outra, apenas devendo respeitar o que preceitua a Constituição Federal. O constituinte estabeleceu competências privativas, exclusivas, concorrentes e comuns, o quadro abaixo demonstra de forma sintética o que e falamos aqui.

Conforme o quadro 1, temos as competências privativas que são delegáveis em alguns pontos mediante Lei Complementar, no que se refere à capacidade de legislar. Entretanto, em relação aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal vige a autonomia federativa, que significa sua capacidade de auto gestão, de elaborar suas próprias leis e ter seu judiciário, à exceção do município que não possui poder judiciário. Ainda em relação à possibilidade de legislar, existe a competência concorrente, em que o governo central elabora normas gerais e os estados e municípios suplementam, por isso alguns doutrinadores falam em competência suplementar. Em matéria administrativa só existem competências exclusivas e comum, sendo que a primeira é indelegável e a segunda são ações administrativas que podem ser realizadas simultaneamente por todos.
Desse modo, a constituição prevê um modelo cooperativo entre os membros dos poderes da República Federativa brasileira, ou seja, coordenado, em que os fundamentos maiores são: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e V - o pluralismo político”. (CF, art. 1). Foi preciso uma situação de calamidade para testarmos essa capacidade federativa no atual governo.
Portanto, é isso que deve nortear a relação entre os entes federados, acima de interesses político-partidários, principalmente num quadro de pandemia. Para além disso, a constituição pátria em nosso sentir delimita bem as responsabilidade de cada ente federado, bem como de cada poder de modo que o abuso ou interferência de uma função na outra seja bem caracterizada e controlada. Os entes federados tem autonomia e não detém soberania, considerando que o art. 1 supracitado preconiza a indissolubilidade da federação, sendo o Estado brasileiro o verdadeiro detentor dessa soberania. Ressaltando que a separação ou dissolução da federação só poderia ser realizada por meio de uma nova constituinte ou uma revolução. Dessa forma, como certamente não teremos nenhuma nem a outra, é melhor que haja mais foco coordenado e diálogo entre todas as partes da República Federativa do Brasil, e pensar para além da COVID-19 numa reforma política, numa reforma do pacto federativo e numa reforma tributária, reformas essas que são estruturais para retomarmos o prumo de uma federação real de paz, justa e solidária.
Prof. Dr. José Irivaldo
Professor Adjunto - UFCG/CDSA/UAGESP
Professor de Direito Constitucional da UFCG
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